Relato mostra o cotidiano da Ilha de Santa Catarina após a Independência do Brasil

07/09/2022 07:09

A bandeira portuguesa é retirada da Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim: sinal de uma nova era

Estrangeiros trazendo no braço esquerdo uma faixa com a inscrição “independência ou morte”; fortalezas baixando a bandeira portuguesa; soldados motivados para luta; escravos receosos; moradores preocupados com um possível contra-ataque; gente disposta a ajudar; gente que não queria conversa sobre política… Diferentes aspectos do cotidiano da Ilha de Santa Catarina dias após a Independência do Brasil, em 1822, foram relatados por um explorador francês que chegou à região para conduzir experimentos científicos e acabou se deparando com uma recém-libertada nação.

Louis Isidore Duperrey (1786-1865) foi um célebre navegador francês e também um cientista. Membro da Academia Americana de Artes e Ciências, cartógrafo, hidrógrafo e botânico[1], chegou em outubro de 1822 à Ilha de Santa Catarina conduzindo uma expedição científica. Trazia consigo uma carta do rei de Portugal que lhe daria acesso à colônia e lhe garantiria apoio técnico para suas pesquisas. No entanto, uma das primeiras coisas que Duperrey descobriria ao chegar à Ilha de Santa Catarina é que estava aportando em uma nova nação, uma recém-libertada.

O navegador desconfiou que havia algo diferente logo na chegada, em 15 de outubro de 1822. Nesse dia, fundeou na baía norte sem avistar a bandeira de Portugal na Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim. No dia seguinte, quando pôde desembarcar na pequena ilha, foi informado pelo militar responsável de serviço que a bandeira portuguesa havia sido recolhida – afinal o Brasil não respondia mais à coroa lusa.

Ilustração do século XVIII da Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim, com destaque do local para a bandeira portuguesa

Duperrey enviou membros de sua tripulação para a então Vila de Nossa Senhora de Desterro, atual Florianópolis, para que colhessem informações completas da situação. Foram recebidos por uma junta de cinco representantes que compunham o governo provisório local. A carta do rei de Portugal foi lida entre eles e decidiu-se por acatar os pedidos de Duperrey.

Autorizado a proceder seus experimentos científicos, o explorador fez de Anhatomirim sua base de operações. No entanto, para além das anotações que deixou sobre suas 306 observações cartográficas, Duperrey registrou como estava o cotidiano nas fortalezas e na então Vila de Nossa Senhora de Desterro dias após o Grito do Ipiranga[2].

Pintura de 1803, retratando a Vila de Nossa Senhora de Desterro[5]

Havia, como escreveu, gente com medo. Espalhou-se um boato que os homens de Duperrey eram, na verdade, tripulantes de uma corveta portuguesa encarregada de fazer frente a alguns defensores da liberdade do Brasil. Isso dificultou um pouco o apoio à expedição. Mas havia também aqueles que faziam questão de falar da Independência a eles.


‘Independência ou morte’, nos repetia o ajudante do forte de Santa Cruz[3] todas as vezes que íamos lá; e, empolgado por seu entusiasmo, ele acrescentava logo, como que querendo que compartilhássemos de sua convicção: ‘Sim, nós preferimos morrer a sermos recolonizados, como quer a corte’. [2]


Duperrey anotou em seu relato que os escravos, parte dos 10 mil habitantes da Ilha de Santa Catarina, segundo os cálculos do próprio francês, estavam entre os mais receosos. Temiam perder as poucas coisas que haviam conquistado, como um lugar para morar.

Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim


Os próprios escravos, longe de despertar para o grito de independência ou de verem a aurora de suas emancipações, estavam tomados de espanto e, mais inquietos que seus senhores, pareciam não temer mais do que a perda de seu indigno repouso. De tal forma a força do costume deixava profundas raízes nestes seres, que a menor mudança era vista como uma violência.[2]


Os estrangeiros que estavam na província, anotou Duperrey, tiveram logo que demostrar seu apoio ao Brasil livre. Para evitar a deportação, andavam com um adereço no braço esquerdo que trazia estampado o Grito do Ipiranga.


Tinha sido passada uma ordem, ameaçando de deportação a todo português ou estrangeiro estabelecido na província que, no prazo de um mês, a contar de 12 de outubro, não tivesse se declarado em favor da independência. Cada um foi obrigado, como sinal de sua adesão à nova ordem dos acontecimentos, de levar no braço esquerdo, à guisa de distintivo, uma circunferência verde e com centro amarelo; situado no canto de um galão[4] de cobre dourado, sobre o qual estavam gravadas estas palavras que por longo tempo abalaram e fizeram a Europa: “Independência ou morte” (…) [2]


Havia também muito apoio à Independência por parte da população local, de acordo com o explorador francês. Por algumas vezes em seu relato, Duperrey se refere a Dom Pedro como herói ovacionado pela população de Santa Catarina.

Em muitas casas de moradores locais pelas quais esteve com seus homens, o explorador foi bem recebido e tomou contato com muitos dos costumes locais. Por outro lado, comentou, em certo momento, um encontro com um ex-militar português que se disse completamente indiferente aos acontecimentos ou à política praticada pela Europa.

Duperrey ainda fez muitas anotações sobre a fauna, a flora e o relevo da Ilha de Santa Catarina, elogiando a beleza e a diversidade da nação brasileira recém-libertada. Por vezes, seu relato toma formas poéticas, descrevendo “o murmúrio da água corrente”, “o sussurro das folhas que caem”, “a sombra silenciosa da mata”. Aspectos que, segundo ele, “estimulam o pensamento e lembram o homem de sua grandeza e sua insignificância. Jamais algum viajante que tenha respirado o ar do Brasil, sentado à sombra de suas florestas, deixou de receber as mais profundas impressões”[2].

Justamente as impressões de Duperrey, colhidas em apenas 14 dias em que esteve na Ilha de Santa Catarina, passaram à história como um relato de diferentes aspectos, feitos por um cientista que veio pela curiosidade comum aos naturalistas, mas que conheceu um momento singular do Brasil, um momento que completa 200 anos.

Fontes & notas

[1] De acordo com o verbete Louis Isidore Duperrey, na Wikipedia. Acesso em 06/09/22.

[2] O relato de Duperrey está no livro Ilha de Santa Catarina. Relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX, organizado por Martim Afonso Palma de Haro, da Editora da UFSC e da Editora Lunardelli, de 1990, nas páginas 247 a 264. Os trechos destacados aqui são todos desse volume.

[3] Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim.

[4] Uma espécie de fita que, algumas vezes, fazia parte também de uniformes militares.

[5] Pintura que consta do relato de Adam Johann von Krusenstern, de 1803, retirado do livro Ilha de Santa Catarina. Relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIXorganizado por Martim Afonso Palma de Haro, da Editora da UFSC e da Editora Lunardelli, de 1990. 

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